publicado em 18/10/2021
Mônica Machuca
Consultora, São Bernardo do Campo SP, Brasil
Vamos começar pelo começo. Mas, afinal, o que marca o início do desenvolvimento de um novo produto cosmético ou dermocosmético? O briefing!
O briefing é um documento que firma a ideação que será convertida em produto. Ele é o mapa que descreve o que o P&D deve entregar ao cliente. É um orientador para a execução do projeto e deve conter informações essenciais que assegurem maior assertividade e sucesso.
É no briefing que estão os primeiros desafios do P&D: estabelecer boa comunicação entre a área solicitante e as áreas de interface. Quando as equipes do P&D não fazem parte da construção do briefing, a chance de o projeto ser um desastre pode ser grande. Não sei exatamente por que é comum a elaboração desse documento ser liderada pelas equipes de marketing ou de novos negócios, muitas vezes sem o envolvimento das demais áreas. Apesar de haver um compêndio grande de informações estratégicas, há pouca conexão entre as áreas de interface, resultando em baixo entendimento do projeto.
Temos, então, o primeiro gap, que é a comunicação que acaba desencadeando uma série de consequências que podem ser desastrosas para a boa execução e para o atingimento do projeto.
“Comunicação é uma competência que alavanca várias outras, como gestão, negociação e mediação de conflitos.” (Kelly Sacramento)
Não é de hoje que o P&D é visto, dentro da maioria das empresas, como um departamento isolado que detém conhecimento técnico muito específico. Mas a verdade é que o P&D deveria ser visto como um departamento estratégico e central, já que atua diretamente nas seguintes estratégias:
- Financeiras – por meio de reduções de custos nas formulações, o que resultam no aumento da receita líquida da empresa.
- Mercadológicas – por meio da diversificação do portfólio de produtos, para lançar novas linhas e possibilitar maior mix, bem como para o desenvolvimento de produtos para mercados adjacentes.
- Inovação – trazendo novos produtos e conhecimentos que ainda não faziam parte do mercado de modo geral.
Empresas com processos de desenvolvimento de produtos mais maduros saem na frente: elas envolvem todas as áreas de interface, inclusive a do P&D, desde a primeira etapa do processo, e garantem maiores chances de sucesso do projeto como um todo.
O desenvolvimento de um novo pro[1]duto é um processo complexo. O cliente interno sempre deseja lançar produtos com ciclos curtos e demanda por maior número de atributos e menor custo. Isso é natural, já que o mercado está cada vez mais exigente, dinâmico e detém cada vez mais conhecimento sobre as funcionalidades e até mesmo sobre ingredientes ativos e excipientes das formulações.
Este é o desafio do gestor do P&D: desenvolver a habilidade de orquestração de uma série de necessidades, de forma que nada fique de fora e a melodia seja tocada com harmonia.
Trago, a seguir, 10 etapas fundamentais para estruturar com maestria a jornada do desenvolvimento de novas formulações cosméticas, de maneira a garantir boa música para o cliente interno ouvir enquanto elabora os preços de venda.
1ª etapa: Análise do benchmarking
Novos desenvolvimentos costumam partir de um ou mais produtos já existentes no mercado (benchmarking), tanto para o aspecto sensorial quanto para a forma cosmética. Nesse momento, é importante avaliar as características físico-químicas, os ativos e os excipientes que compõem a formulação, de maneira a entender o que está promovendo a entrega do aspecto sensorial e os resultados de eficácia (claims) que estão descritos no rótulo do produto.
A depender da complexidade da formulação, faz sentido colocar o(s) produto(s) de referência (benchmarking) em estudo de estabilidade acelerada para avaliar algumas de suas especificidades, por exemplo, a cristalização de filtros solares, a alteração de odor ou mesmo a degradação de vitaminas. Essa etapa tem a finalidade de trazer mais subsídios para iniciar o desenvolvimento de uma nova fórmula.
No caso de projetos nos quais não há um produto de referência – sobretudo em casos de produtos inovadores que ainda não existem no mercado –, o briefing precisa descrever, de forma detalhada, as finalidades do produto, para que o P&D o desenvolva de forma assertiva.
2ª etapa: Pesquisa preliminar
Assim que é recebida a demanda de novo projeto, o P&D realiza uma pesquisa preliminar sobre as matérias-primas e as propriedades intelectuais de concorrentes.
A seleção de matérias-primas não é uma etapa tão simples quanto parece. Devido à grande disponibilidade de produtos concorrentes, é preciso determinar os componentes ativos com base em sua eficácia, concentração, aplicação e compatibilidades.
Formulações cosméticas e dermocosméticas são complexas e necessitam de um número alto de matérias-primas que, juntas, apresentem funções sinérgicas para a aplicação desejada. O desafio está em estabilizar todos os itens.
Outra missão é pesquisar fornecedores com qualidade, sem tirar o olho no custo e nos prazos de entrega, de maneira a cumprir os cronogramas de desenvolvimento. O P&D deve solicitar dos fornecedores: dossiês de eficácia, cartas de abertura de blends, especificações, MSDS, FISPQ e origem das matérias-primas, entre outros documentos.
Depois que isso é realizado, é importante avaliar se a formulação que está sendo delineada não tem patentes. Você já imaginou desenvolver uma formulação que atende a 100% das premissas do briefing e, ao final, descobrir que uma das misturas ou um componente está protegido por patente e não poderá ser utilizado?
Para apoiar e agilizar esse processo de varredura de patentes, é comum as empresas de grande porte terem uma área específica para esse fim. Nos casos das empresas menores e das startups, o esse apoio é realizado por escritórios especializados.
3ª etapa: Análise das regulamentações vigentes
As quantidades das matérias-primas utilizadas nas formulações cosméticas precisam ser controladas de acordo com a indicação de uso do fabricante, bem como de regulamentações vigentes (RDCs, listas restritivas, Catec, legislações específicas para naturais e orgânicos, e Guia de Estabilidade de Produtos Cosméticos, da Anvisa). Além da avaliação toxicológica.
Apesar de não ser uma obrigatoriedade o P&D avaliar os dizeres de rotulagem, é importante participar desse processo com as áreas regulatória, de marketing e de pesquisa clínica, pois há uma interface técnica importante para garantir que a formulação esteja de acordo com os claims do produto.
4ª etapa: Definição da embalagem
Não existe fórmula sem embalagem, assim como não existe embalagem sem fórmula. A embalagem para produtos cosméticos tem como objetivos proteger, identificar, facilitar o uso, conservar as formulações (garantindo sua validade) e dar um apelo estético importante para atrair o consumidor.
A embalagem não precisa estar definida quanto ao seu formato, no início do projeto, mas é mandatório que o material de contato com a formulação seja previamente definido para que se possa seguir com os estudos de compatibilidade.
5ª etapa: Custo da formulação
Alguns profissionais podem se questionar: Por que o custo da formulação está no escopo do P&D para desenvolver uma nova formulação? É simples: quem decide o que e o quanto será adicionado à formulação é o P&D. E não dá para sair adicionando os ativos e os excipientes sem saber o custo individual das matérias-primas.
De nada adianta o P&D ter o custo target se não puder acessar os preços das matérias-primas e das embalagens e os custos industriais para conseguir atingir esse objetivo.
6ª etapa: Desenvolvimento das formulações (fase bancada)
Após os estudos teóricos, inicia-se a alquimia das misturas complexas para disponibilizar uma formulação estável, segura e eficaz, que atenda a expectativa do briefing, atenda a regulamentação vigente e tenha um aspecto sensorial que atenda à expectativa do consumidor.
Essa é a hora de aplicar o conhecimento científico e tecnológico e a experiência adquirida à realização dos testes. O pesquisador gera codificações para as formulações, faz registros de tentativas, volta a verificar a literatura técnica da matéria-prima, e assim por diante, em um loop até conseguir chegar a algumas boas propostas de formulação.
Não é recomendável que seja desenvolvida uma única fórmula para seguir para os estudos de estabilidade e para a realização das demais comprovações. Deve-se desenvolver, no mínimo, duas fórmulas para só então realizar todos os testes. Essa é uma estratégia de agilidade para o caso de uma das formulações apresentar resultado negativo em algum dos parâmetros de avaliação.
Nessa fase de manipulação, o pesquisador deve lembrar de como será o processo produtivo na fábrica (o scale up), ou seja, ele deve realizar a manipulação com o entendimento de quais serão os equipamentos utilizados na fábrica e de quais serão as fases auxiliares. Essa visão sobre a produção faz toda a diferença na agilidade e assertividade.
7ª etapa: Pacote analítico e estudos de segurança e eficácia
Na fase de desenvolvimento de bancada, o pacote analítico, os estudos prévios de segurança e eficácia, o painel sensorial e a pesquisa com o consumidor (fica a critério da empresa de fazer ou não todos esses processos) devem correr com as formulações selecionadas. São esses resultados que respaldam a tomada de decisão sobre qual formulação deve seguir para a próxima fase: a produção do lote-piloto.
Os processos que devem ser realizados em relação ao produto na fase de seu desenvolvimento são:
- Pacote analítico: testes de estabilidade, contagem microbiana, challenge test, compatibilidade com a embalagem e quantificação de ativos (se necessário).
- Estudos de segurança e eficácia: normalmente, as empresas não realizam estudos de segurança e eficácia na fase de bancada, salvo, por exemplo, de formulações como protetor solar, nas quais são realizados testes de segurança e screening de FPS e FP-UVA.
- Painel sensorial: se a empresa que está desenvolvendo o produto tiver um laboratório de análise sensorial com painelistas treinados e estrutura adequada, o painel sensorial pode ser realizado internamente, no entanto a maioria das empresas faz uso dos institutos clínicos homologados e certificados no mercado.
- Pesquisa com o consumidor: é cada vez mais comum as empresas implementarem essa etapa de pesquisa com o consumidor, para trazer um desenvolvimento assertivo em relação à aceitação do público-alvo. Nessa etapa, uma dúvida importante surge: com quais amostras devem ser conduzidos os testes? Tema polêmico! Cada empresa adota um critério e, em sua maioria, depende das condições de BPF ou BPL nas quais o bulk será manipulado, pois não existe uma regulamentação ou guia para essa uniformidade. Um bom tema para alinhar com a garantia da qualidade e as áreas técnicas.
8ª etapa: Produção do lote-piloto (transferência de tecnologia)
Nessa etapa, todos os testes em fase de bancada já foram aprovados e chega o momento da formulação sair de uma escala laboratorial e ir para a fábrica (produção do primeiro lote-piloto), a preocupação envolve o pesquisador, pois afinal, o valor agregado agora é maior.
O lote-piloto é necessário para que o scale up atenda os estudos clínicos, segurança e eficácia, realizados em institutos credenciados e homologados pela empresa, e para que sejam conduzidos os estudos de estabilidade, de compatibilidade, o challenge test, o teste microbiológico e a quantificação (se necessário).
Na maioria das empresas, o pesquisador que desenvolve a fase de bancada realiza o scale up, no entanto algumas empresas têm uma área de tech transfer.
9ª etapa: Dossiê de registro
O dossiê de registro de um produto cosmético é composto de documentos que asseguram a qualidade e a segurança do produto disponibilizado ao consumidor. Esses dossiês são baseados nas regulamentações vigentes que indicam as referências necessárias de acordo com a lei, decretos e outras regulamentações legais pertinentes ao registro ou à notificação de um cosmético.
O P&D e as áreas de interface, como as de desenvolvimento analítico, controle de qualidade, editoração gráfica, marketing e pesquisa clínica, estruturam o dossiê com as informações pertinentes a cada área, para que este seja entregue à área regulatória e esta siga com o registro ou a notificação do produto na Anvisa, seja este de grau 1, seja de grau 2.
É importante dizer que o dossiê deve ser mantido nos arquivos da empresa, pois pode haver necessidade de auditoria pelas autoridades sanitárias, bem como para responder dúvidas que surjam durante o shelf life do produto.
10ª etapa: Lote de lançamento (transferência de tecnologia)
Nessa etapa, a escala aumenta, o scale up sai do lote-piloto e vai para o lote de lançamento e os ajustes de processos já foram realizados no lote-piloto e devem ser replicados nos lotes de lançamento, garantindo assim que o processo esteja adequado.
Nos lotes de lançamentos, não deve haver a necessidade de avaliar os estudos de segurança e eficácia, pois estes devem ter sido validados no lote-piloto, o que fica a critério de cada empresa. No entanto, é importante que os estudos de estabilidade, compatibilidade, microbiologia e shelf life sejam realizados nos primeiros lotes fabricados. Cada empresa adota o critério em quantos e quais os lotes seguem com esse processo de análise (é preciso definir se serão os primeiros lotes fabricados de cada tamanho de lote).
E, para finalizar, está claro que o P&D tem um grande desafio em todas as etapas de desenvolvimento de um novo produto cosmético, pois este precisa ser estável, seguro, eficaz, estar dentro do target e ser inovador, e é importante que se estabeleçam as etapas de desenvolvimento para atender às principais expectativas do projeto do produto como um todo.
A empresa precisa se manter competitiva no mercado, crescer, inovar e se diferenciar, e o P&D pode atuar com agilidade, qualidade, otimização, produtividade e entregar resultados superiores ao benchmarking proposto, trazendo soluções assertivas e dentro dos prazos estabelecidos.
Ressalto que nada disso poderá ser conquistado se não houver uma comunicação adequada entre todos os membros do projeto, sejam eles internos, sejam externos. A comunicação é um dos fatores fundamentais para um bom funcionamento e para que haja disciplina e a entrega de resultados, e os gestores envolvidos no processo podem ter o engajamento de desenvolver essa habilidade em todos.
Mônica Machuca é bacharel em Química, pós-graduada em Cosmetologia e especialista em Dermatologia Experimental e Dermatocosmética. Tem experiência de mais de 20 anos em P&D de cosméticos.
Este artigo foi publicado na revista Cosmetics & Toiletries (Brasil), 33(5): 1D-4D, 2021.
Publicado originalmente na página da autora no Linkedin
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